O Leitor de Dicionários (parte III)
O pequeno auditório calou-se. Fez-se um silêncio sepulcral. Só porque eu pronunciei, entoado e imponente, as seguintes palavras, magistralmente escalonadas uma após a outra: “O formulismo, meus senhores, é o Abaçaí dos literatos brasileiros contemporâneos!”. Os jornalistas entreolharam-se, escrutinaram uns aos outros, de modo suave, decerto, mas como se quisessem descobrir, sem causar grande rebuliço, se a ignorância lhes era particular ou se, de outro modo, acometia a todos. Tratava-se de uma entrevista coletiva organizada pela editora Companhia Vieirense com o objetivo de divulgar meu mais recente livro, o décimo sétimo de uma carreira consagrada, mas francamente decadente.
“A verve”, diziam os críticos mais mordazes, “abandonou Malegro de Almeida como bem o fizeram todas as suas esposas: sem olhar para trás”. Não satisfeitos, continuavam a massacrar-me, sem dó nem piedade. “Malegro de Almeida deveria ter um pouco mais de respeito com a própria obra e parar de maculá-la com as intragáveis composições pedantes e descarnadas com as quais nos vêm presenteando nos últimos dez anos”, foi a pérola que rabiscaram semana passada na seção de literatura contemporânea de O Tombadilho, revistinha artificialmente intelectualizada produzida sob medida para pequenos burgueses que se pretendem filósofos. “É uma pena ver um dos grandes autores da primeira metade do século transformar-se num dos maiores inimigos da nobre arte na segunda metade da centúria”, disse o colunista semanal do Diário Fluminense, um jornaleco de décima quinta categoria que circula na mão do populacho. Coube ao editor-chefe da Fórum das Letras adornar-me com a coroa de espinhos: “A verdade, infelizmente, é nua e crua: só restou a Malegro de Almeida o refugo da verborragia hermética, à qual ele se apega como o último recurso para fugir ao destino inexorável de um triste fim de carreira”.
Boiciningas malditos! Sanguessugas! Em qualquer lugar e em qualquer tempo, pode-se contar que sempre haverá essa gente chata e inoportuna para dizer que os seus livros “não são tão bons assim”, ou pior, “são razoáveis”, ou pior ainda, “são um lixo”. Acha isso engraçado? É porque não é com você. Talvez, quando alguém for falar mal de algo que escrevi, eu possa tapar os ouvidos com as mãos, fazer uma careta bem feia e ficar gritando para abafar a voz do desgraçado. Bem, pode ser uma boa idéia, afinal de contas, as crianças são seres muito inteligentes, mais inteligentes do que nós. Nós não, vocês; porque eu ainda não sou um adulto – apesar dos meus cinqüenta e muitos anos. Não há a categoria dos pré-adolescentes? Então, eu me encaixo perfeitamente na categoria dos pré-adultos. Além do mais, tenho a impressão de que sou sempre pré alguma coisa. Por exemplo – talvez o melhor de todos: sou pré-feliz. Estou sempre na iminência de consegui-la, mas, no final, na estirada, nunca a alcanço. A felicidade é um bicho danado, sabe? Traiçoeiro. Por vezes, ela deixa que você a vislumbre, deixa que você fantasie, sonhe com todas as coisas que poderia ser e fazer caso a capturasse. Aí ela espera. Espera o máximo que pode, enquanto você se aproxima, achando-se o grande caçador. Quando você arma o golpe, ela corre, corre o mais que pode e se esconde em algum canto – ou mesmo não: usa, ao invés disso, seu mecanismo de camuflagem. Aí você continua sendo pré-feliz. Em franca decadência artística, a felicidade realmente distanciava-se cada vez mais de mim. A imaginação manteve-me vivo durante anos a fio. E agora, sem ela, que podia eu fazer? Não, definitivamente não podia arranjar outra. Eu sempre soube que havia uma relação biunívoca entre homens e imaginações. Apesar de algumas poucas e pouco importantes generalizações que se pode fazer – e os sociólogos bem o fazem – a verdade é que cada homem tem o seu modo único de ver o mundo. Dentre os cristãos ortodoxos de classe média do Brasil de meados do século XIX, pode contar que havia quem acreditasse que, após a morte, voltaria a este planeta como um labrador fofinho e brincalhão; ou, no seio do corpo docente do Departamento de Física Quântica de Cambridge, quem tivesse medo de fantasmas. Sempre há dissidentes e isto porque a vida social é regida por uma única e abrangente lei: a da casualidade – e não, como acreditam os neo-comteanos, a da causalidade.
“A verve”, diziam os críticos mais mordazes, “abandonou Malegro de Almeida como bem o fizeram todas as suas esposas: sem olhar para trás”. Não satisfeitos, continuavam a massacrar-me, sem dó nem piedade. “Malegro de Almeida deveria ter um pouco mais de respeito com a própria obra e parar de maculá-la com as intragáveis composições pedantes e descarnadas com as quais nos vêm presenteando nos últimos dez anos”, foi a pérola que rabiscaram semana passada na seção de literatura contemporânea de O Tombadilho, revistinha artificialmente intelectualizada produzida sob medida para pequenos burgueses que se pretendem filósofos. “É uma pena ver um dos grandes autores da primeira metade do século transformar-se num dos maiores inimigos da nobre arte na segunda metade da centúria”, disse o colunista semanal do Diário Fluminense, um jornaleco de décima quinta categoria que circula na mão do populacho. Coube ao editor-chefe da Fórum das Letras adornar-me com a coroa de espinhos: “A verdade, infelizmente, é nua e crua: só restou a Malegro de Almeida o refugo da verborragia hermética, à qual ele se apega como o último recurso para fugir ao destino inexorável de um triste fim de carreira”.
Boiciningas malditos! Sanguessugas! Em qualquer lugar e em qualquer tempo, pode-se contar que sempre haverá essa gente chata e inoportuna para dizer que os seus livros “não são tão bons assim”, ou pior, “são razoáveis”, ou pior ainda, “são um lixo”. Acha isso engraçado? É porque não é com você. Talvez, quando alguém for falar mal de algo que escrevi, eu possa tapar os ouvidos com as mãos, fazer uma careta bem feia e ficar gritando para abafar a voz do desgraçado. Bem, pode ser uma boa idéia, afinal de contas, as crianças são seres muito inteligentes, mais inteligentes do que nós. Nós não, vocês; porque eu ainda não sou um adulto – apesar dos meus cinqüenta e muitos anos. Não há a categoria dos pré-adolescentes? Então, eu me encaixo perfeitamente na categoria dos pré-adultos. Além do mais, tenho a impressão de que sou sempre pré alguma coisa. Por exemplo – talvez o melhor de todos: sou pré-feliz. Estou sempre na iminência de consegui-la, mas, no final, na estirada, nunca a alcanço. A felicidade é um bicho danado, sabe? Traiçoeiro. Por vezes, ela deixa que você a vislumbre, deixa que você fantasie, sonhe com todas as coisas que poderia ser e fazer caso a capturasse. Aí ela espera. Espera o máximo que pode, enquanto você se aproxima, achando-se o grande caçador. Quando você arma o golpe, ela corre, corre o mais que pode e se esconde em algum canto – ou mesmo não: usa, ao invés disso, seu mecanismo de camuflagem. Aí você continua sendo pré-feliz. Em franca decadência artística, a felicidade realmente distanciava-se cada vez mais de mim. A imaginação manteve-me vivo durante anos a fio. E agora, sem ela, que podia eu fazer? Não, definitivamente não podia arranjar outra. Eu sempre soube que havia uma relação biunívoca entre homens e imaginações. Apesar de algumas poucas e pouco importantes generalizações que se pode fazer – e os sociólogos bem o fazem – a verdade é que cada homem tem o seu modo único de ver o mundo. Dentre os cristãos ortodoxos de classe média do Brasil de meados do século XIX, pode contar que havia quem acreditasse que, após a morte, voltaria a este planeta como um labrador fofinho e brincalhão; ou, no seio do corpo docente do Departamento de Física Quântica de Cambridge, quem tivesse medo de fantasmas. Sempre há dissidentes e isto porque a vida social é regida por uma única e abrangente lei: a da casualidade – e não, como acreditam os neo-comteanos, a da causalidade.