Wednesday, February 14, 2007

O Leitor de Dicionários (parte III)

O pequeno auditório calou-se. Fez-se um silêncio sepulcral. Só porque eu pronunciei, entoado e imponente, as seguintes palavras, magistralmente escalonadas uma após a outra: “O formulismo, meus senhores, é o Abaçaí dos literatos brasileiros contemporâneos!”. Os jornalistas entreolharam-se, escrutinaram uns aos outros, de modo suave, decerto, mas como se quisessem descobrir, sem causar grande rebuliço, se a ignorância lhes era particular ou se, de outro modo, acometia a todos. Tratava-se de uma entrevista coletiva organizada pela editora Companhia Vieirense com o objetivo de divulgar meu mais recente livro, o décimo sétimo de uma carreira consagrada, mas francamente decadente.
“A verve”, diziam os críticos mais mordazes, “abandonou Malegro de Almeida como bem o fizeram todas as suas esposas: sem olhar para trás”. Não satisfeitos, continuavam a massacrar-me, sem dó nem piedade. “Malegro de Almeida deveria ter um pouco mais de respeito com a própria obra e parar de maculá-la com as intragáveis composições pedantes e descarnadas com as quais nos vêm presenteando nos últimos dez anos”, foi a pérola que rabiscaram semana passada na seção de literatura contemporânea de O Tombadilho, revistinha artificialmente intelectualizada produzida sob medida para pequenos burgueses que se pretendem filósofos. “É uma pena ver um dos grandes autores da primeira metade do século transformar-se num dos maiores inimigos da nobre arte na segunda metade da centúria”, disse o colunista semanal do Diário Fluminense, um jornaleco de décima quinta categoria que circula na mão do populacho. Coube ao editor-chefe da Fórum das Letras adornar-me com a coroa de espinhos: “A verdade, infelizmente, é nua e crua: só restou a Malegro de Almeida o refugo da verborragia hermética, à qual ele se apega como o último recurso para fugir ao destino inexorável de um triste fim de carreira”.
Boiciningas malditos! Sanguessugas! Em qualquer lugar e em qualquer tempo, pode-se contar que sempre haverá essa gente chata e inoportuna para dizer que os seus livros “não são tão bons assim”, ou pior, “são razoáveis”, ou pior ainda, “são um lixo”. Acha isso engraçado? É porque não é com você. Talvez, quando alguém for falar mal de algo que escrevi, eu possa tapar os ouvidos com as mãos, fazer uma careta bem feia e ficar gritando para abafar a voz do desgraçado. Bem, pode ser uma boa idéia, afinal de contas, as crianças são seres muito inteligentes, mais inteligentes do que nós. Nós não, vocês; porque eu ainda não sou um adulto – apesar dos meus cinqüenta e muitos anos. Não há a categoria dos pré-adolescentes? Então, eu me encaixo perfeitamente na categoria dos pré-adultos. Além do mais, tenho a impressão de que sou sempre pré alguma coisa. Por exemplo – talvez o melhor de todos: sou pré-feliz. Estou sempre na iminência de consegui-la, mas, no final, na estirada, nunca a alcanço. A felicidade é um bicho danado, sabe? Traiçoeiro. Por vezes, ela deixa que você a vislumbre, deixa que você fantasie, sonhe com todas as coisas que poderia ser e fazer caso a capturasse. Aí ela espera. Espera o máximo que pode, enquanto você se aproxima, achando-se o grande caçador. Quando você arma o golpe, ela corre, corre o mais que pode e se esconde em algum canto – ou mesmo não: usa, ao invés disso, seu mecanismo de camuflagem. Aí você continua sendo pré-feliz. Em franca decadência artística, a felicidade realmente distanciava-se cada vez mais de mim. A imaginação manteve-me vivo durante anos a fio. E agora, sem ela, que podia eu fazer? Não, definitivamente não podia arranjar outra. Eu sempre soube que havia uma relação biunívoca entre homens e imaginações. Apesar de algumas poucas e pouco importantes generalizações que se pode fazer – e os sociólogos bem o fazem – a verdade é que cada homem tem o seu modo único de ver o mundo. Dentre os cristãos ortodoxos de classe média do Brasil de meados do século XIX, pode contar que havia quem acreditasse que, após a morte, voltaria a este planeta como um labrador fofinho e brincalhão; ou, no seio do corpo docente do Departamento de Física Quântica de Cambridge, quem tivesse medo de fantasmas. Sempre há dissidentes e isto porque a vida social é regida por uma única e abrangente lei: a da casualidade – e não, como acreditam os neo-comteanos, a da causalidade.

Wednesday, February 07, 2007

O leitor de dicionários (parte II)

A jovem senhora gorducha soltou, então, uma de suas gargalhadas que ressoavam meio quarteirão. Eu a havia desconcertado. Depois de alguns segundos acabando-se de tanto rir, a matriarca, agora novamente terna e açucarada como doce de leite vagabundo, esqueceu por um momento suas panelas e frigideiras, voltou seu corpanzil para mim, aproximou-se, agachou-se acompanhada dos gemidos habituais e me disse, com um sorriso que misturava astúcia e comiseração:
- O dicionário é um livro, meu amor. Igualzinho a todos aqueles que ficam no escritório. Só que ele é bem grandão! Vá até o quarto de seu tio e peça a ele que pegue o dicionário para você, sim?
Deu-me um beijo na testa e outros dois nas bochechas, afagou meus cabelos, levantou-se e deu meia-volta. Eu, da minha parte, fui correndo até o quarto de tio Oswaldo – aliás, tudo tinha começado ali mesmo, quando eu, furtivamente, roubei-lhe uma palavra duma folha que parecia querer fugir dos seus pares, atirando-se ao chão; tudo deveria mesmo, acabar ali.
Cheguei sobressaltado à soleira da porta e, de lá, avistei tio Oswaldo completamente ensimesmado, e encastelado em meio a livros, apostilas e anotações manuscritas que, amontoadas de um modo ao mesmo tempo atabalhoado e ordeiro, pareciam protegê-lo do mundo exterior. Bati ao portão de seu castelo cutucando-lhe a coxa com dois de meus dedinhos gordinhos, bem de leve. Ele fez que não era com ele (eu sabia de antemão que se tratava disso, pois ele detestava que eu o interrompesse quando estudava e, sempre que o tentava por em interregno, ele fingia não sentir meus cutucões, meus puxões na fímbria de suas camisas nem meus chamados murmurados). Desta vez, contudo, obstinei-me mais do que nunca; ele iria me ouvir, quisesse ele ou não! Atinei que o melhor seria, então, coadunar meus três estratagemas e usá-los de uma só vez. E foi assim que procedi: com o dedo indicador (sim, eu já tinha o conhecimento empírico de que, quanto menor a superfície, maior a pressão) de minha mão esquerda penetrei com denodo nas banhas abundantes de seu culote, com minha mão direita puxei violentamente sua blusa e com minha bocarra escancarada gritei-lhe: “Tio!”. Tudo isso, claro, na mais perfeita sincronia.
Passaram-se uns dois minutos e ele, como que em câmera lenta, foi virando-se enfadonhamente para a direita e para baixo. Quando pude ver seus olhos, eles refletiam uma sutil irritação, mas também seus lábios, desenhados em um malicioso sorriso contido, deixavam transpassar um certo ar de reconhecimento pelo esforço de seu pequeno sobrinho. Ficou a fitar-me por mais alguns segundos e acabou por render-se à minha carinha de cachorro pidão e, então, libertou um sorriso largo que lhe abriram as fendas na bochecha gorducha.
- Que queres, Rodriguito? (sempre conjugava os verbos indefectivelmente na segunda pessoa do singular e, no mais, possui um domínio absoluto sobre a norma culta da língua).
- Me ajuda a pegar o dicionário?
Tio Oswaldo pendeu um pouco a cabeça para a direita, franziu o cenho e desenhou um sorriso malicioso; ficara bastante curioso com a minha requisição.
- E o que um pequerrucho como ti podes querer com o dicionário? Surpreende-me notar que sabes, além do mais, do que se trata... – emendou baixando o tom da voz e volvendo os olhos para baixo. Não devias estar brincando com seus bonecos, aqueles novos que ganhastes de tua mãe semana passada? São tão bonitos! Quando eu tinha a tua idade, não havia bonecos tão bem feitos; mexem os braços, as pernas, giram a cabeça, contorcem-se todos, como lhes queira! Ah, ah, Ah! Ponha-te a brincar lá na varanda, que está um sol forte e gostoso! E estás tão branquinho, filho... é bom que pegues um pouco de sol, faz bem para os ossos. Então... vá-te embora, vá-te embora! – e foi me expulsando, com o seu modo idiossincrático de carinho, fazendo-me dar meia volta e conduzindo a tapinhas nas costas até a porta do quarto.
Tio Oswaldo preocupava-se sinceramente com meu desenvolvimento infantil, em todos os sentidos. Mas, principalmente, no que se refere à minha sociabilidade. Não gostava de ver-me sempre em casa, perambulando de um cômodo ao outro, observando a vida interna daquele pequeno claustro medieval, sempre calado e meditativo. Costumava censurar-me quando me notava a presença furtiva nas soleiras, ouvindo as conversas que os adultos travavam dentro das alcovas. Pensava que eu deveria estar na rua, brincando com outros meninotes da minha idade, fazendo peripécias próprias da puerilidade humana. Entristecia-lhe, particularmente, o fato de eu não ter amigos – o que não era inteiramente verdade. Eu tinha, sim, um grande amigo, apenas ele não se encaixava no conceito de amizade de meu tio. Seu nome era Esnife: era um cachorro de pano malhado, com um focinho em forma de bolota preto e um dos olhos tristonhos envolvido por uma grande pinta marrom. Mas, bom, este não é o momento de falarmos de Esnife; ele ocupará muitas outras páginas adiante.
Tio Oswaldo levou-me até a porta e voltou para se sentar novamente em sua cadeira, sem olhar para trás, displicentemente. Eu, porém, assim que senti que suas mãos grossas haviam abandonado minhas costas, parei, e assim fiquei por alguns segundos. Sem me virar, girando apenas um pouco a cabeça, os olhos apontados para o assoalho, joguei minha última cartada:
- Vovó me disse que é um livro grandão...

Tuesday, January 23, 2007

O leitor de dicionários (parte I)

"E eu lá tenho cara de dicionário?"
Que eu me lembre, esta foi a primeira vez que ouvi seu nome. Mal sabia eu que o tal sujeito tornar-se-ia, em muito pouco tempo, meu melhor amigo. Tinha cinco anos e acabara de interpelar minha avó para perguntar o que era uma leucorréia, palavra que havia demorado uns dez minutos para decodificar na fímbria de folha que pendia da escrivaninha de tio Oswaldo.
- Não..., respondi titubeante, esbugalhando meus grandes olhos verde-escuros.
Bom, pelo menos eu achava que não. Dicionário soava masculino e achei que, pelo sim, pelo não, seria mais prudente não identificar à minha avó algo do sexo oposto ao dela (a noção de sexo já estava bem estabelecida em minha mente). Mas, como poderia saber, afinal de contas? Nunca havia visto a tal coisa, não poderia saber como era sua cara. E se fosse feia? Pior ainda, dizer que minha avó tinha cara de um homem torpe... Apesar de seus cinqüenta e muitos anos, ela ainda conservava muito da sua vaidade de cocota espevitada; não ia, decerto, agradar-lhe ouvir de seu neto uma injúria dessas.
- Então... vá procurar! – exclamou vovó virando-me as costas e reiniciando a preparação do almoço.
Tentei resolver o enigma – procurar o que? Aonde? – refletindo durante alguns minutos, parado em frente à vovó, que revolvia energicamente algo dentro da panela de barro. Nessas horas em que preparava seus quitutes, não gostava que ninguém a perturbasse e todos na casa sabiam disso. Somente eu, impertinente e atrevido que era, tinha coragem de invadir seu reino culinário. Bem, eu estava lá, num delíquio imperturbável, conjeturando soluções para o desafio intelectual que me haviam lançado. Vovó nem havia percebido a minha permanência, segura de que eu não continuaria a desobedecer as regras daquele espaço quase sagrado da casa que era a cozinha. De tal modo abstraiu-se da minha presença, abrindo e tampando panelas, que, ao virar-se bruscamente a caminho da estante, atropelou-me e caímos os dois embaralhados no chão.
- Mas menino! Que coisa! Ainda está aqui?! – bradou enquanto apoiava-se na beira da pia para erguer toda a sua robustez.
- Desculpe, vó... – disse eu ainda no chão.
- Por que ficou parado aí, Deus do céu? Não sabe que a cozinha é pequena e não comporta muita gente? Ainda mais na hora do almoço!
Levantei-me rapidamente e postei-me em posição de sentido. Depois de um rápido olhar retilíneo, baixei, então, prosternado, a minha fronte imensa (estava naquela idade em que este membro já cresceu tudo o que tinha de crescer, mas o resto do corpo não, dando-me aquele aspecto de figura de desenho animado) e pedi desculpas mais uma vez. Vovó enterneceu-se um pouco com a minha solenidade e resolveu escrutinar a minha atitude.
- Vovó não mandou você procurar a palavra no dicionário? – disse-me num tom maternal.
Com esta única frase, a matrona respondeu as duas questões que me atormentavam de uma só vez. Deveria, então, procurar uma palavra no dicionário! Que revolução! Calculei, então, baseado na lógica aristotélica que sempre me acompanhou desde que extravasei os limites do berço, que o dicionário era uma coisa que continha palavras. Talvez, mesmo, fosse feito de palavras. Logo me veio à mente a imagem de um gigantesco baú de madeira maciça que, se aberto, revelaria uma infinidade de palavras de papelão (daquele tipo com as quais me ensinavam a ler no colégio). Altivo e radiante, indaguei à vovó pela localização do dito cujo.
- Está lá no escritório, meu filho – respondeu vovó já novamente entretida no fogão.
Escritório é o modo como chamávamos, lá em casa, o quarto que fora de papai. Mantinham-no da mesma forma desde a sua morte. Podia-se entrar lá, mexer nas coisas, mas com o compromisso de sangue de que se tornaria sempre a por as coisas onde estavam antes da intervenção. Era um modo de cristalizar seu espírito naquele velho cômodo já bastante empoeirado (as faxineiras, dizia minha avó, “tinham mãos pesadas” e poderiam quebrar qualquer coisa), e eu tinha uma vaga noção disso na época. Mas entrar lá ainda constituía um certo tabu para mim. Não que eu me sentisse triste pelo acometimento de lembranças – até porque não as tinha, já que papai morrera quando eu ainda mamava nos seios maternos. O indizível respeito que todos (especialmente minha avó e meu tio) demonstravam pelo lugar não me era completamente acessível à compreensão e isso abrumava minha cosmologia. Certo era que papai havia sido alguém importante, dado que deduzira, com certa facilidade, de conversas entrecortadas que, volta e meia, captava de rabo de ouvido. Numa das últimas que consegui interceptar, meu tio Oswaldo e meu irmão Cacá discutiam os prós e contras de autorizar um tal camarada fazer uma biografia de meu pai. Ora, não se costumam fazer biografias de indivíduos insignificantes, que não deram uma boa contribuição à cultura de um determinado povo – por vezes, de toda a humanidade.
Apesar de pouco me aventurar no escritório, podia jurar que nunca vira um baú ou algo parecido por lá. Havia, sim, muitos livros; dezenas, centenas deles, de todas as cores, formatos e tamanhos. Certo dia – e como me lembro bem desse dia! – um colega da escola veio visitar-me e, olhando da soleira do cômodo, espantado, perguntou-me se minha família vivia de vender livros. Disse-lhe que não, que eram todos de papai. O pequenino torceu um pouco a boca, meditou por um instante enquanto movimentava as sobrancelhas cerradas e disse, num tom de eureka: “Meu pai faz coleção de selos!”.
Resolvi, então, indagar à vovó:
- Mas vó... – introduzi-me com o ar reticente de sempre.
- Ô Rodrigo, já não falei para deixar a vovó?! – replicou ela, sem paciência.
- No escritório não tem nenhum baú... – falei baixinho, quase murmurando, envergonhado que estava.
- Fale para fora, menino!
Detestava quando ela dizia isso. Mas estava determinado. Queria conhecer o dicionário! Tomei coragem, enchi os pulmões e falei grosso, sem agressividade, porém: “No escritório não tem nenhum baú”.
- E pra que você quer um baú agora, Rodrigo?! – exclamou vovó antes de provar uma nesga de ravióli.
- O dicionário... quero olhar dentro do dicionário.
(continua)